Artemisia Gentileschi: Suzana e os anciãos

Elizabeth Sariedine
12 min readDec 16, 2020

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fig.1

Artemisia Gentileschi (1593–1653).

Suzana e os Anciãos.

Óleo sobre tela.

c. 1610–11

Palácio de Weissenstein

A priori, a obra divide-se em três partes: o centro esquerdo é ocupado por uma mulher, que se apresenta despida e sentada sobre uma escadaria. Por cima de sua perna esquerda repousa um pano branco, que também oculta levemente sua genitália. O tecido apresenta drapeados, os quais possuem variações tonais, que vão do branco ao cinzento, com nuances sutis de azul, causadas pela incidência luminosa. A figura feminina é representada com o tronco retorcido, suavemente inclinado para a esquerda. Na lateral sestra, o braço encontra-se levantado, tenso, e protege um dos seios, ao passo que a mão encostada no pescoço se ergue em afastamento. Ao mesmo tempo, ambas as pernas estão viradas para o canto esquerdo da tela, dobradas, permitindo que a figura esteja sentada. Os pés estão firmados, desigualmente, na escadaria: um apoia-se no segundo degrau, e o outro no terceiro.

Na lateral direita, o braço que demonstra-se igualmente levantado e tensionado, é erguido na direção oposta ao corpo, rumo ao canto superior destro. Ademais, o rosto, cujas maçãs estão coradas, está virado para o canto esquerdo da tela, e acompanha a torção do tronco; o olhar dirige-se para o canto inferior sestro, delineado pelas sobrancelhas e testa franzidas, entrementes. a boca apresenta-se levemente aberta. O cabelo castanho é trançado em forma de tiara, ao mesmo tempo em que uma parte das madeixas encontra-se solta, ao passo que uma das mechas cai, repousada sutilmente, sobre uma das bochechas.

Ao fundo, ainda na parte esquerda da obra, no canto superior, uma figura masculina debruça-se sobre outro homem (canto superior direito). Ambos estão acostados sobre um parapeito ─ centro ─, em que se notam detalhes em relevo, incrustados na superfície. O primeiro homem (canto superior esquerdo), traz vestes em tons de marrom, protegido por um casaco, em que escapam por ele as mangas e a lapela de tecido branco da veste interior; sua mão (canto superior esquerdo), estende-se rumo a figura feminina, uma vez que apoiada no parapeito, enquanto a outra mão (centro superior) toca o ombro da segunda figura masculina. Outrossim, seu rosto encontra-se virado para a direita, em que se notam sobrancelhas e testa franzidas, bem como marcas de expressão e pequenas rugas, o nariz e a boca estão ocultos pelo segundo homem; seu cabelo é de um castanho escuro, com reflexos de preto e cacheado, farto e de corte médio.

No que diz respeito a segunda figura masculina, notam-se vestes de cores variadas, com um casaco azul claro, cuja manga escapa o tecido da vestimenta interior branca, e uma capa vermelha, repleta de drapeados. Uma de suas mãos repousa no parapeito, e a segunda se ergue em um movimento pensativo em que o dedo indicador encosta em seus lábios. Os cabelos, ao contrário do primeiro homem, são ralos e loiros, em que alguns fios são grisalhos, e acompanham a barba, que por sua vez é farta, igualmente cinérea. Seu rosto demonstra uma expressão de cálculo, em que o olhar se dirige no sentido da figura feminina, com um olhar contemplativo, ao mesmo tempo em que é maquiavélico (por extensão do termo), a testa enrugada acompanha o amarfanhamento das sobrancelhas e notam-se marcas ainda mais profundas de expressão. Seu corpo encontra-se inclinado em direção a figura feminina, e o tronco demonstra-se plenamente recostado no parapeito, conforme o braço erguido encontra-se fora do apoio fornecido pelo suporte arquitetônico.

De mais a mais, o parapeito referido apresenta relevos incrustados em forma de folhagens, e tanto ele quanto a escadaria são feitos do mesmo material, cuja cor é marrom, com nuances amareladas e cinza-castanhas. Na pintura, aparecem dois degraus da escadaria, que servem de suporte para a figura feminina. Além disso, o terceiro plano (parte superior) contém um céu azulado, com variações azuladas e cinzentas, as quais contrastam com as discretas nuvens brancas. Para mais, a luz que ilumina a cena é centralizada e superior às personagens, encontra-se sobre elas, cuja maior incidência se dá sobre a mulher despida, sendo enfática na sombra formada pela sua perna (lateral esquerda inferior).

Em linhas gerais, as figuras da composição apresentam genuína inquietação, manifesta seja no tronco contorcido de Suzana (figura feminina, centro esquerdo), ou nos dois anciãos (duas figuras masculinas, cantos superiores direito e esquerdo), que cochicham em seus ouvidos, debruçados no parapeito, confabulando enquanto a observam, a tergo.

A narrativa de Suzana e os anciãos foi diversas vezes representada na história da arte, essencialmente durante o renascimento ─ em detrimento da introdução de nus ─, e estendeu-se até o século XVIII¹. Para além disso, as representações do evento descrito pelo profeta Daniel², continham, na pintura de artistas homens, mulheres tradicionalmente pintadas como figuras delicadas e passivas.

A história de Suzana está presente no Antigo Testamento do livro do profeta Daniel e a narrativa trata do evento ocorrido com a esposa de um rico proprietário que habitava a região babilônica. O profeta descreve a jovem como uma mulher virtuosa, casta e honesta. Certa vez, em um dia de forte calor, Suzana sai para banhar-se no rio que passava pelo pomar, o qual ornamentava o portentoso jardim da casa do jovem casal. Assim que as servas que foram acompanhá-la se retiram do local, à seu pedido para que buscassem o necessário para seu banho, dois senhores frequentadores da casa se aproximam, sem a ciência da jovem, para observá-la em seu momento íntimo, ao passo que arquitetam diferentes maneiras de assediá-la. Surpresa e assustada, Suzana se choca com as presenças e, essencialmente, com os desejos que os anciãos descrevem. A partir da manifestação de seus desejos e da recusa repleta de repulsa, os dois juízes avançam, tocando e repuxando as poucas vestes de Suzana. Para além disso, ameaçam-na com denúncias públicas de adultério caso ela continuasse rejeitando a ambos, como resultado a jovem reage gritando e prefere ir a julgamento a se submeter aos senhores; seus gritos atraem as servas, que, ao chegarem em seu encontro, são deflagradas com as denúncias caluniosas dos anciãos, os quais a acusam de adultério. Quando em julgamento, e sob pena de morte por apedrejamento, um jovem que assistia o evento, incomodado com a ocasião e suspeitando das narrativas do senhores, ergue-se e pede para que os juízes sejam ouvidos separadamente. Este fato faz com as histórias se contradigam, e a verdade apareça, expondo os dois juízes e seu esquema calunioso, fato que culmina na condenação de ambos.

O momento em que Suzana é ultrajada pelos senhores foi o selecionado por múltiplos pintores durante o renascimento e o barroco. Em geral, o acontecimento era retratado de maneira a colocar a protagonista como frágil e passiva, exposta em sua vulnerabilidade. Segundo a Dra. Carmen Diniz (2014, p. 15), “Susana, na maioria das vezes, se mostra impotente diante da ousadia daqueles anciãos, sobretudo porque a representação cultural, o discurso sobre as mulheres nestes quatro séculos, é de submissão e fragilidade diante do poder masculino. Eles vão assediá-la e se ela não aceitar suas propostas será punida por isso.”

Artemisia Gentileschi, no entanto, é considerada a única artista a realizar uma interpretação feminina do evento bíblico: a Suzana da pintora romana reage ao conflito, uma vez que sua primeira ação é a de afastamento dos anciãos, em um gesto pleno de repúdio e ultraje do assédio. Não só isso: a artista foca no acontecimento do evento, enquanto ele se degringola e retrata belamente, quase de maneira palpável, desde as injúrias e violências às calúnias.

Pictoricamente, a artista concentra o olhar do espectador exatamente no centro do caos, isto é, mantém-se fiel ao acontecimento, indiferente à paisagem e detalhes excessivos que pudessem distrair o observador do teor factual representado.

Assim como Caravaggio, Artemisia jamais receou a feiura. De acordo com Gombrich³, para Michelangelo, recear a feiura era uma fraqueza imperdoável, uma vez que o desejo do artista barroco era o de retratar a verdade, como seus olhos a viam. É nesse sentido que ambos os artistas, Artemisia e Caravaggio, utilizaram a luz como uma impactação cênica, sobre isso Gombrich (2013), diz:

“O ‘naturalismo’ de Caravaggio, isto é, sua intenção de reproduzir a natureza de forma fiel, quer a consideremos feia ou bela, era talvez mais devota do que a ênfase de Carracci na beleza. (…) Até mesmo seu modo de lidar com luz e sombra contribui para tal propósito: em vez de conferir leveza e suavidade ao corpo, sua luz é dura e quase ofuscante no contraste com as sombras profundas.” (p.209)

Sabe-se, sobretudo, que o estilo da pintora italiana era caravaggesco*, e assim como Michelangelo, Artemisia dedicou-se em analisar diversos trechos bíblicos, em especial do Antigo Testamento, cujas passagens continham maior teor de violência e narrativas de abuso e iracúndia; ao representá-los, a artista canalizou o conteúdo bíblico de maneira ímpar, ao passo que, em linhas gerais, as mulheres da narrativa assumiam o papel de protagonistas no cenário pictórico, fato que pode ser visualizado em alguns exemplos, como Judith decapitando Holofernes (1612–13), Madalena (1615–16), Jael e Sísera (1620).

No entanto, a escolha da artista em privilegiar tais narrativas ocorreu a ela também como uma forma de catarse. Conforme constam nas Atas do processo de estupro (Menzio, 2004), à idade de 19 anos, em 1612, Artemísia é estuprada por Agostino e forçada, após o estupro, a manter relações sexuais durante meses, mediante a promessa de uma reparação pelo casamento. O pai de Artemísia, ao saber do acontecido, denuncia seu antigo colega e é iniciado um longo e penoso processo de julgamento. Tassi é preso e nega a sua culpa, o que leva Artemísia, numa inversão surpreendente, para o banco dos réus. (MARTINEZ, 2012).

Nota-se, portanto, que as várias formas de violência, desde o estupro à execração pública, sofridas pela artista corroboraram para que seu fazer arte fosse não apenas catártico, como denunciativo. Isso aparece, sobretudo, na duplicação do olhar que a jovem artista provoca quando em várias das suas obras, e com uma função alegórica (Underwood Jr., 2008), é seu rosto e seu corpo que dão forma a diversas personagens com sua nudez mais ou menos velada, com sua juventude**. Sobre isso, Martinez (2012), ainda pontua:

Contudo, não nos parece que Suzana e os velhos (1622) sejam apenas mais uma alusão ao estupro sofrido, parece-nos mais uma elaboração das cenas do julgamento, afinal de contas, foram os sábios que olharam para a sua nudez, tocaram seu corpo e, ao submetê-la à tortura, completaram uma cena polimórfico-perversa. (…) Também como aconteceu com a Suzana bíblica, os sábios colocaram em dúvida a honestidade de Artemísia e a condenaram à execração pública, uma forma de morte. Porém, surpreende descobrir que, em 1610, aos 17 anos de idade, Artemísia já havia colocado em cena esse mesmo drama de Suzana assediada pelos velhos, aliás, teria sido a primeira obra assinada por ela, como prenúncio do nascimento de uma artista.” (p.7–8)

Nesse diapasão, Artemísia concebe outras duas versões (uma em 1622, e outra em cerca de 1648–1649), de “Suzana e os anciãos”, sob olhares e perspectivas diferentes, a artista manteve o caráter denunciativo em suas representações da mesma cena. Para tal, Martinez (2012), pontua:

“Pois bem, se se trata de considerar a versão de Suzana e os velhos (1622) como uma espécie de resposta a uma cena de estupro, seria a sua primeira versão, a de 1610, também uma resposta a uma cena similar? Outra cena de sedução, anterior à focal e muito mais violenta? (…) É assim que podemos olhar para Suzana e para Artemísia um pouco com os olhares dos velhos, dos sábios, dos juízes, não só porque somos seduzidos pela beleza, mas porque somos convocados a decifrar precisamente o que nos seduz, embora isso possa ser feito esteticamente, já que a violência da mensagem está muito mais atenuada, chega a nós na forma de uma elaboração mais acabada, precisamente na forma de arte. (…) São os velhos que olham para a jovem Artemísia, a pretexto de olhar para seu trabalho, a começar pelo pai que a apresenta a diversos artistas da época, entre eles o próprio Tassi e Michelangelo, neto do grande artista renascentista.” (p.8–9)

Outrossim, em 1648, a artista retrata a terceira versão do tema, e aparece com uma espécie de “retradução”, dado que remete a realizada aos seus 17 anos (1610). Recentemente, Modesti (2012) anunciou a descoberta do que seria a última obra de Artemisia: uma quarta versão de Suzana e os velhos, cerca de 1652, ano de falecimento da pintora. Sobre a quarta pintura da série de “Suzanas” pouco foi encontrado.

fig.2

Artemisia Gentileschi (1593–1653).

Suzana e os Anciãos.

Óleo sobre tela.

1622

Burghley House

Na fig.2 , notam-se detalhes expressivos significativamente distintos da fig. 1: a incidência luminosa é imensamente mais cruel, as sombras e o contraste, tanto luminosa quanto colorido, são fortes e vívidos. A cena, mais uma vez, se desenrola perante o observador, mas, desta vez, o olhar de Suzana já não é o de repúdio declarado, e sim de um espanto genuíno, com traços e lamentação e súplica, dirigidas ao alto, acompanhando a direção erguida pelo olhar. As cores também já não se apresentam equilibradas como a princípio: vê-se tons de azul que dominam a obra, ao fundo, nas vestes de um dos senhores, e nas nuances do pano branco que cobre a jovem.

A pintura de 1622 revela uma Artemisia mais madura, tanto em suas pinceladas, quanto em sua própria faceta que se mescla com a personagem bíblica: a obra, digna e própria do barroco, amadureceu, também, na transmissão da densidade da cena. Os velhos aparecem como figuras ainda mais lascivas e sibilantes, e até mesmo o fundo parece mais revolto com o evento: o céu aparece mais escuro, com nuvens mais tempestuosas e violentas. Todo o ambiente corrobora um naturalismo ruidosamente, e demasiado, real.

fig.3

Artemisia Gentileschi (1593–1653).

Suzana e os Anciãos.

Óleo sobre tela.

c. 1648–1649

Galeria Moravská

Sem embargo, a pintura de 1648 (fig. 3), desenovela um ambiente mais escurecido, no entanto, não tão incrivelmente contrastante e dramático quanto o cenário de 1622. As cores mostram-se mais equilibradas dentre os tons de ocre e azul, em que se notam, inclusive, nuances de verde, ao fundo, e cinza. A cena é pintada ligeiramente diferente: Suzana permanece sentada, porém, perante ela jaz um recipiente, aparentemente de metal trabalhado e esculpido, ao passo que a segunda versão apresenta a jovem banhando-se, com os pés na água. Nesta terceira versão, a tensão corporal da jovem é maior, sendo o movimento do corpo trabalhado em antagonismo aos senhores, ou seja, a busca pelo distanciamento é tal que se nota manifesta nas expressões faciais e na torção corpórea. É interessante acrescer que em todas as versões, Artemisia representa um dos senhores ornamentado com vestes azuis, enquanto varia as cores da vestimenta do outro ancião entre vermelho e tons de ocre. Enquanto isso, Suzana é representada carregando sobre uma, ou ambas pernas, um leve tecido branco.

Em linhas gerais, é possível notar nas obras da série um amadurecimento artístico de Artemisia, bem como de seu sofrimento psíquico. Conclui-se, assim, com os dizeres de Lapierre (1998), sobre a artista: foi a primeira mulher a ser reconhecida e respeitada no universo predominantemente masculino das artes e, ainda, a ser capaz de viver do seu trabalho. A pintora foi, e é, importante para a história da arte não apenas pela sua capacidade de ressignificar a própria dor a partir da representação pictórica, Artemisia foi um marco temporal, político e social, tanto quanto artístico, cujo trabalho tem retumbância poética vibrante na contemporaneidade e, certamente, o terá no devir. Não se trata unicamente de inserir a figura feminina no léxico da arte, a artista foi para o além-mundo, dirigiu-se ao sofrimento psíquico e retratou bela e intensamente a agonia existencial. Por diversas foi considerada como “mais uma pintora caravaggesca”, todavia, basta um olhar atento para sua história e narrativas plásticas para que se perceba a grandiosidade de uma artista destemida e absolutamente talentosa, capaz de ressignificar o barroco de seu tempo, à sua maneira e de sua forma.

Bibliografia/notas de rodapé:

  1. DINIZ, Carmen Regina Bauer. Suzana e os anciãos: as diferentes formas de representação na arte ocidental: contraponto de olhares masculinos e um olhar feminino. XII Seminário de História da Arte. Pelotas, EdUFPEL, nº4, p. 2–3; p.4–7., 2014

2. BÍBLIA, A. T., Daniel, 13. In BÍBLIA. Português. Sagrada Bíblia Católica: Antigo e Novo Testamentos. Tradução de Canção Nova — Bege. São Paulo: Itapevi, SP, 2010.

3. GOMBRICH, Ernst Hans. A História da Arte. Rio de Janeiro, LTC, 2013.

* “[Caravaggescos ou caravaggisti era a denominação dada a pintores que, no início do século XVII, imitaram o estilo de Caravaggio. Os métodos de Caravaggio, e em particular o uso enfático que fazia do chiaroscuro para obter um realismo dramático, exerceram enorme influência em Roma na primeira década do século XVII — tanto sobre os pintores italianos quanto sobre artistas estrangeiros que afluíam àquela que, então, era a capital da arte europeia.” (CHILVERS, 2001: 98).

** MARTINEZ, Viviana Carola Velasco. Suzana e os velhos: sedução, trauma e sofrimento psíquico. Psicologia em Estudo. Maringá, PR, vol. 17, n.3, p.5–10, 2012.

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